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10/06/2017

Roger Waters Entrevista (2017-06-02)

“Não se recebe nada construindo muros. Só os idiotas fazem isso”




Guerras pavorosas. Guerras que expulsam pessoas de suas terras, que matam, que destroem famílias. Não é de se estranhar que as guerras continuem tão presentes nas músicas do britânico Roger Waters. Seu pai morreu na Segunda Guerra Mundial. Seu avô, na Primeira.

Aquele garoto que cresceu sem um pai continua muito vivo dentro desse homem de 73 anos.

O gênio criativo do Pink Floyd, o homem sofredor que se esgoela levado por suas obsessões, o esquerdista crítico com a ordem estabelecida, o de letras pungentes, está de volta. E se passaram 25 anos. Sim, é verdade, há 12, em 2005, redigiu uma ópera, Ça Ira, uma raridade em sua longa trajetória. Mas desde 1992, data de seu último disco de rock solo, não trazia uma nova coleção de músicas.

Voltas e voltas, round and round. A vida dá voltas, já escrevia em ‘Us and Them’, pérola do mítico álbum The Dark Side of the Moon (1972), que catapultou os Floyd à fama, ao reconhecimento mundial. Isso de dar voltas, no seu caso, se confirma. Quando na segunda metade dos anos oitenta, após deixar o grupo, Waters brigava com seus colegas para que não pudessem usar o nome Pink Floyd sem que ele estivesse no projeto, David Gilmour e Nick Mason pareciam os donos do legado da banda: eram eles que andavam por todas as partes cantando Money. Mas o tempo o devolveu a Waters.


Após percorrer o mundo com a turnê mais bem-sucedida da história de um artista solo – 220 apresentações entre 2010 e 2013, mais de 458 milhões de dólares (1,5 bilhão de reais) arrecadados –, a que realizou retomando The Wall, obra do Pink Floyd fundamentalmente composta por ele, retorna agora com Is This the Life We Really Want?, editado pela Columbia (Sony Music), um disco de aroma maduro, lembrando bastante os do Pink Floyd dos setenta, desses que transmitem a sensação de que o apocalipse espreita, mas que ainda existe um raio de luz que passa por uma fresta da persiana. Um disco que viaja do ruído da sociedade da informação, desse barulho em vivemos instalados, à intimidade oferecida por um momento de paz embalado pelo som cálido de um violão. Que fala da guerra, dos refugiados, de uma sociedade guiada pelo medo, do silêncio e da indiferença de tantos diante do que está acontecendo. O Pink Floyd em 1968

Em uma manhã ensolarada e limpa em Nova York, Waters entra com passadas firmes em uma sala de estúdios de gravação próximos ao parque Madison Square Garden e se acomoda em uma poltrona diante da mesa de mixagem. Às vezes, os anos favorecem as pessoas. Aquele garoto feioso das capas dos anos setenta é hoje um homem atraente que quase lembra, guardadas as devidas proporções, Richard Gere. Camiseta negra, calça jeans azul justa, botas negras, olhar azul, George Roger Waters (Great Bookham, Surrey, Reino Unido, 6 de setembro de 1943), o Lennon do Pink Floyd, dispara com língua afiada quando fala de política e menciona sem reservas sua dura infância quando fala de si mesmo. Conversa pausadamente, pronunciando todas e cada uma das sílabas com um inglês muito british que não foi contaminado com o sotaque americano, mesmo morando já há vários anos na cidade dos arranha-céus.

Pergunta. O senhor redigi sobre a guerra desde 1968. Em seu novo disco, fala de pessoas que morrem em guerras distantes. Isso se deve ao fato de o seu pai ter morrido na Segunda Guerra Mundial?

Reposta. A guerra está presente porque está sempre aí. Mas, sim, pode ser que isso ocorra pelo fato de eu ter uma empatia especial com as vítimas. E isso talvez tenha a ver com o fato de que mataram meu avô e meu pai nas duas guerras mundiais. Meu avô morreu em 24 de setembro de 1916 e seu filho, em 18 de fevereiro de 1944. Por isso, talvez tenha a ver com essa agonia gerada pela perda e que milhões de pessoas estão sofrendo com isso no mundo todo.


“Escrever alivia. Compartilhar um sentimento e mostrar-se diante dos demais pode ser catártico. Você se expõe à aprovação, ao ridículo”

P. Em 17 de fevereiro de 2014, você visitou o local onde o pai morreu, a 30 quilômetros de Roma, conduzido por um veterano de guerra, Henry Schindler. O que descobriu nessa viagem?

R. Toda a viagem, a visita ao jardim do memorial, ver o nome de meu pai inscrito na pedra, tudo isso me fez entender a dimensão da necessidade de eu conquistar a aprovação dessa pessoa que mal conheci, pois eu era muito pequeno quando ele morreu. Mas eu o admirava e o respeitava por causa das histórias e lendas que minha mãe contava sobre ele. Comprovei como ele era e é importante para mim. Certa vez, após de um show, um veterano se aproximou de mim, olhou-me bem nos olhos, pegou minha mão e disse: “Seu pai estaria orgulhoso de você”. Fiquei sem palavras. Emocionou-me muito ouvir aquele homem dizer aquilo.

P. Quem ele era?

R. Era um veterano do Vietnã. Costumo convidá-los para os shows. Fiz isso na turnê de The Wall. Convido-os e fico com eles no intervalo do concerto para cumprimentá-los. Aparecem ali homens feridos, homens com queimaduras.

P. O que representou para o senhor crescer sem um pai?

R. Você passa toda a vida fazendo trejeitos toda vez que está com outro homem, tenta impressioná-lo. Fiz isso desde que era pequeno, faço desde então.

P. Essa ausência influiu no fato de se tornar músico, na necessidade de redigir canções?

R. Provavelmente. A verdade é que não sei de onde vem a escrita, é algo completamente misterioso. Mas a necessidade infinita do tapinha no ombro, a busca de um pai “bem certo” tem sido uma constante na minha vida.

P. As canções o ajudaram a se impor às guerras interiores, às suas batalhas consigo mesmo?

R. Sim, estou certo de que é assim. Às vezes, explico as coisas a mim mesmo e para os outros por meio da música ou da poesia…

P. Ou seja, redigir canções alivia…

R. Sim, redigir alivia, é gratificante. Compartilhar um sentimento ou mostrar-se diante dos demais pode ser catártico. Você se expõe à aprovação, ao ridículo. E com muita frequência as pessoas respondem com amor, empatizam se você expressa um sentimento que reconhecem. Nunca contei isto a ninguém, mas muitas vezes na minha vida disse a mim mesmo: “por que não lhe falei?” É frequente a gente falar com alguém e guardar algo porque está preocupado com qual será a resposta. Minha experiência é que não compartilhar, tentar ocultar aspectos negativos sobre si, não se arriscar a contar, não admitir algo que você fez porque acha que te retirarão o amor é quase sempre uma má decisão.

P. Bem, às vezes, contar o que se passa com a gente pode ferir o outro…

R. Sim, é verdade. A vida é complexa.

P. O senhor foi contestador desde muito pequeno. De onde procede essa veia contra a autoridade?

R. Vivi um incidente na creche quando tinha dois ou três anos. Havia um brinquedo, um caminhão vermelho doado pelos americanos, um triciclo. Um dia me sentei em cima e minhas calças rasgaram. Uma moça que trabalhava na creche decidiu que tinha de costurá-las, assim, tirou-as de mim à força. Eu me senti como se estivessem me violando. Resisti e briguei com ela com toda a força que tinha meu pequeno corpo, mas ela era forte demais para mim.

P. Você tinha dois ou três anos e se lembra do incidente?

R. Perfeitamente, é uma lembrança muito forte. Eu me senti vítima dessa bovina errante que não entendia meus sentimentos, os de uma criança. Vivenciei vergonha, humilhação. Posso ter uma ideia do que deve ser alguém estuprar a gente, de tão intenso que foi. Eu gritava como um possesso. Tinha enorme sensação de desamparo.



“Marine Le Pen, o maldito Nigel Farage e Donald ‘Maldito’ Trump se enganam. Temos que acolher os refugiados compreender de onde vêm”

P. E essa sensação de desamparo o acompanhou na escola?

R. Basta que te aconteça uma vez para que você se preocupe com que volte a suceder. E assim foi, já adolescente, durante um fim de semana com a Cadet Force, uma espécie de versão júnior do Exército, ou da Marinha. Estávamos em um barco, em uma estação naval no norte da Inglaterra. Uma noite me ocorreu algo similar. Um grupo de rapazes me atacou. É algo que costumavam fazer. Te assaltavam no meio da noite, baixavam as suas calças e colocavam betume nas bolas. A há há.

P. Daí o “We don’t need no education” [não necessitamos de educação’, verso da arquifamosa ­Another Brick in the Wall, de Pink Floyd]…

R. Alguém me mostrou um desenho que fiz, que agora está na exposição do Pink Floyd do Victoria and Albert Museum, de Londres, onde aparece um professor apontando um menino pequeno e lhe dizendo: “Você é patético. Nunca chegará a ser nada”.

P. Sério?

R. Assim nos tratavam na escola. Lembro-me de pessoas que supostamente eram professores que escreviam na lousa: “Isto é lixo”. Atacavam ad hominem as crianças, eram uns sacanas. Não todos, havia gente muito decente, mas alguns eram uns porcos.

P. Ou seja, você não passou muito bem nos anos da escola…

R. Oh, não, odiei cada minuto do colégio. Primeiros anos da banda britânica

P. Depois estudou arquitetura. Em que momento decidiu que queria ser músico?

R. Quando tinha 14 ou 15 anos. Parecia a única possibilidade de receber dinheiro ou de conseguir dormir com alguém [rs].

P. Era tão difícil assim naqueles tempos?

R. Sim. A outra opção era receber nas apostas esportivas. Lembro-me que eu trabalhava como arquiteto em 1967, mas logo nos tornamos músicos profissionais e tive de deixar o estúdio em que trabalhava. Durante anos vivemos com nada, quase não ganhávamos dinheiro. Pouco a pouco fomos tendo mais sucesso, fazendo shows por todo o país, aprendemos a fazer discos. E finalmente conseguimos fazer um que era realmente bom, The Dark Side of the Moon, que foi um grande êxito. O resto é história.

P. O que representou para você, no auge do Pink Floyd, a saída de Syd Barrett [o primeiro líder da banda, vítima do consumo de LSD] do grupo?

R. Foi muito sofrido. Eu o conhecia desde pequeno. Ficou louco. De repente, a pessoa que era meu amigo, um garoto encantador e com muito talento, parecia um zumbi… A banda tinha tido sucesso graças a ele, compunha todas as canções. Foi devastador. E também muito desgastante. Quando você se apoia em alguém que é seu amigo e ele de repente desaparece, fica a sensação de que isso pode ser o final de tudo. Foi muito dolorido e esquisito, mas conseguimos superar. E representou uma grande mudança. Todos nós nos vimos compelidos a compor. Eu já tinha escrito um par de canções quando ele ainda estava na banda, por isso já estava claro que tinha algumas ideias para expressar. Quando ele se foi tive de ser quem passou a criar tudo.

P. O que aprendeu de sua fase no Pink Floyd e, em particular, daqueles anos em que se separaram, em meados dos anos oitenta?

R. Não acho que tenha aprendido muito nesses anos [ri]. A gente aprende com os erros que comete com as mulheres. Muito. Ou pelo menos eu aprendi. Muito.


“Não creio ter aprendido muito com a ruptura do Pink Floyd. A gente aprende com os erros que comete com as mulheres. Ou pelo menos eu aprendi. Muito”

P. Sério?

R. Sim. Cometi erros muuuuito graves. Mas no final você aprende a ser mais honesto consigo mesmo. Como dizíamos antes, o pior é esconder. E o amor é transcendental. Se você se entrega, vão te ferir, mas também você crescerá e experimentará alegria. Se você não se abre ao amor, você murcha e morre. Também aprendi que não devemos estar abertos só ao amor carnal, a estar com uma mulher para o sexo ou para formar uma família. Você tem que ser capaz de estar com as pessoas que precisam de você, com outros seres humanos. Assim, quando alguém se apresenta às portas da sua fronteira, cheio de pó, porque teve de viver onde lhe coube viver, você tem que lhe dar abrigo. Marine Le Pen, o maldito Nigel Farage e Donald Maldito Trump se enganam. Temos que acolher os refugiados, compreender as sociedades de onde vêm, suas convicções religiosas; temos que abrir espaço em nosso coração para os outros. Nada se recebe construindo muros, apontando para os outros e dizendo: “Nós somos os bons e esses são os maus”. Isso só fazem os idiotas. E fazem isso diariamente, a todo o momento, inventam histórias para apoiar sua visão, nisso consiste a propaganda. Isso é o que têm em comum com Joseph Goebbels. Ele se deu conta de que isso funcionava, e funciona, infelizmente. Por isso é preciso resistir.

P. Você agora mora nos Estados Unidos, um país em que Donald Trump venceu…

R. Ganhei, Ganhei, Ganhei [diz, imitando a voz de Trump]

P. … E os impostos que paga serão destinados a incrementar os gastos militares. Como vivencia isso?

R. É terrível

P. Você veio viver aqui…

R. Vim por meu filho, o menor de meus filhos, depois de um divórcio. Minha esposa era americana e trouxe meu filho, por isso eu o segui…

P. E como se sente?
R. Estou feliz aqui, agora. Encontrei uma boa mulher [rs]. Bem, já está, acho que assim temos que deixar.



Fonte: El Pais
Por Joseba Elola

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